segunda-feira, 11 de outubro de 2010

AS PEDRAS E AS PALAVRAS





O pior que se pode fazer no ensino das rochas ou das pedras, como toda a gente lhes chama, é apresentá-las desinseridas dos respectivos contextos prático e cultural, precisamente os que têm mais probabilidades de permanecer na formação global do cidadão, em geral, e, naturalmente, também, dos estudantes.
Insistir, como tem sido uso e abuso, nas definições estereotipadas e nas listagens para “empinar” e, pior ainda, fazer de tudo isso matéria de ensino obrigatório, tendo em vista a passagem nas provas de avaliação, é um erro grave, com consequências graves. Os alunos passam mas continuam a ignorar a matéria que lhes foi ministrada e lhes seria útil, em termos de bagagem cultural, como cidadãos.
Por esta via, não há formação possível, com a agravante de condenar tal aprendizagem, não só ao esquecimento, como também à sua inclusão no grupo das matérias escolares que se rejeitam ou se detestam, num sentimento que fica para a vida.
Todos falamos de rochas com base num conhecimento comum, empírico, vulgar, ligado à experiência quotidiana mesmo do mais iletrado dos cidadãos. Rocha é um galicismo que, entre nós, se sobrepôs ao termo roca, bem mais antigo, talvez pré-romano, e daí a expressão enrocamento com que se designa o acto de proteger com blocos de rocha certos pontos da linha de costa face à acção erosiva das vagas. Cabo da Roca deve o seu nome a esta versão arcaica da palavra rocha. Em meios intelectuais, mais eruditos, fala-se de rocaille, um termo francês alusivo ao barroco, o estilo artístico, das artes plásticas, da música e da literatura, que recorre a figurações de pedra lembrando grutas e rochedos e que, desde os finais do século XVI até meados do século XVIII, se opôs ao classicismo da Renascença, termo este que radica na palavra portuguesa barroco, então usada no sentido de pedra. Vindo do pré-romano, tanto significa, entre nós, pedra como barranco, o sulco que a água das chuvas escava no terreno, tornando-o irregular e pedregoso. Barrocal é a paisagem pedregosa que marca o Jurássico calcário algarvio e barroqueiro, a pedra que se apanha do chão e se arremessa. A mesma a que o alentejano e o algarvio chamam bajoulo, num regionalismo muito seu.
Rochedo deriva de rocha e é o mesmo que penhasco ou penha, expressões vulgares que deram nome a sítios como Penhascoso, Penha Garcia ou às conhecidas Penhas Douradas e Penhas da Saúde, na serra da Estrela. Penha, do castelhano peña, é o mesmo que pena, saída do latim, pinna, de onde o termo pináculo. Penalva do Castelo deve o seu nome à alvura da penha onde se erigiu aquela fortificação medieval. O Castelo da Pena, em Sintra, é assim chamado por estar edificado sobre uma penha, à semelhança de outras que marcam certos cimos pontiagudos do relevo. O mesmo é Penela, localidade anterior à nacionalidade, nascida em torno do Castelo que marca o cimo dos rochedos de arenito do Triásico. O mesmo é ainda penedo que deu Penedo (em Colares), Penedos de Góis, Penedono e Peneda, a serra.
Mais vulgares são o termo e o conceito de pedra, do grego pétra, que traduz a ideia de uma entidade natural, rígida, coesa e dura, do "Reino Mineral". Petróleo é o óleo saído do chão, de dentro das rochas, assim como o carvão-de-pedra, nome que se dava à hulha, é o que se extrai das entranhas da Terra, como se de rocha se tratasse. Petrologia é a ciência que estuda as rochas e petrólogos os seus cultores. Petrificados ficamos quando uma notícia nos gela o sangue e nos imobiliza. Num falar antigo, petrificados são os fósseis, ou seja, os restos dos seres vivos do passado que chegaram até nós depois de mineralizados ou convertidos em pedra. Petra é a antiga cidade da Jordânia repleta de monumentais ruínas escavadas na rocha; Petrópolis é uma cidade brasileira do Estado do Rio de Janeiro e São Petersburgo é o nome da antiga Petrogrado, assim chamada em homenagem a Pedro, não o Santo, mas o Grande, de todas as Rússias.
Pedra angular quer dizer fundamento, base ou suporte. Pedro, nome de gente, vem de pedra. «Tu és Pedro e sobre ti levantarei a minha Igreja» disse Jesus ao discípulo. Pedrógão, Alter Pedroso, Pedrouços e Pedrulha são topónimos derivados de pedra. Aumentativo de pedra, pedrão deu padrão, o marco que os nossos navegadores deixaram na rota dos descobrimentos. Pedrês é a galinha salpicada, num granulado de preto e branco, como o granito. Empedernido diz-se daquele que é insensível como a pedra e pedernal ou pederneira é a pedra-de-fogo, ou sílex, que os nossos avós usavam nos bacamartes, ou com que os tetravós destes talhavam machados, facas e pontas de seta. Empedrar, pedregoso, pedregulho, pedregal, pedrisco e pedreiro, que tanto é o operário que trabalha a pedra, como é o nome que se dava aos morteiros de grande calibre que lançavam pelouros de pedra, são outros vocábulos radicados no mesmo étimo.
Pêro é o nome arcaico de Pedro e Peres são os seus descendentes. Pêro Vaz de Caminha e Pêro da Covilhã são nomes conhecidos da nossa história e Pêro Botelho é o Diabo que não pára de rugir na caldeira que tem o seu nome, no sítio das Furnas, na ilha açoriana de S. Miguel. Peroliva, localidade do distrito de Évora, quer dizer pedra cor de azeitona. Peramanca e Perafita são nomes de sítios da mesma região, que evocam grandes marcos de pedra, através do prefixo pera, que traduz a mesma ideia. Tais "peras" ou estavam mancas, isto é, tombadas, ou ainda se mantinham fitas, maneira antiga de dizer erguidas, na postura fálica em que as colocavam os nossos antepassados do período megalítico e que os pré-historiadores franceses divulgaram sob o nome de menhires, mantendo a expressão original bretã men hir, que significa pedra comprida. Em galês, pedra diz-se lech, de onde o termo cromlech, que significa grande pedra arredondada, já usada no século XVII, para designar este outro tipo de monumento megalítico, de que temos magnífico exemplo no cromleque dos Almendres, perto de Évora.
De origem antiga, duvidosa, talvez do pré-romano canthus, dispomos também do vocábulo canto. Sinónimo de pedra (cantal, em catalão), este termo, muito pouco empregue entre nós, é de uso frequente na vizinha Espanha. Dele derivam cantaria, canteiro, canteira, esta uma versão menos comum de pedreira (cantera, em castelhano) e, ainda, cantil, a ferramenta com que o escultor alisava a pedra, sendo curioso notar que alcantil, com o mesmo étimo, chegou-nos através do árabe al kantil, que refere o escarpado ou cume rochoso.
Com alusão à ideia de pedra usamos ainda o nome latino lapis. Com efeito, era de pedra o lápis feito de ardósia da nossa infância. Deste étimo nasceram expressões mais ou menos correntes como lápide ou lápida, lapídeo que significa petrificado e insensível, lapidoso ou pedregoso e lapidificação que é o mesmo que petrificação, mas que também é uma forma cruel e desumana de execução, entre os fundamentalistas islâmicos, apedrejando os condenados até à morte. Lapidário é o pedreiro e lapidar, como verbo, é talhar a pedra, mas, como adjectivo, que dizer basilar, fundamental. Lapidário é ainda o nome que se dava aos manuscritos que, na Idade Média, falavam das pedras, em especial das suas propriedades medicinais e mágicas, com descrições fantasiosas em torno delas, numa época em que mineral e pedra se confundiam. Lapidadas são as gemas que enriquecem as jóias dos que têm gosto e posses para as adquirir, sendo o lápis-lazuli (pedra azul) uma delas. Lapidicidas diz-se dos moluscos que perfuram as pedras para aí se alojarem, lapidículas são as águias e outras aves que fazem ninhos entre pedras ou nas fendas dos rochedos. Lapilli é o termo italiano adoptado pelos nossos vulcanólogos para nomear um tipo particular de produtos piroclásticos, para os quais já dispúnhamos da expressão açoriana, bagacina.
À pedra vulgar, dos menos e dos mais letrados, à rocha, dos que passaram pelos bancos da escola elementar, e ao quase esquecido canto há, ainda, a juntar o elemento de composição culta lito, saído do grego, lithos, que contem a ideia de pedra ou rocha, de uso restrito a estratos mais avançados em termos de escolaridade e vivência sóciocultural. Litologia é, assim, a disciplina interessada no estudo das rochas. Litogénese alude às suas origens e litosfera é o termo que, em linguagem científica, se dá à capa rochosa que envolve a Terra, formando os continentes e o substrato dos fundos oceânicos. Litografia e litogravura, paleolítico e megalítico, batólito, fonólito, litoclasto, litófago e litificação exemplificam alguns dos muitos termos de uma linguagem erudita, apoiados naquela expressão de origem grega.
Muitíssimo menos divulgado, mesmo entre os geólogos, mas bem conhecido dos cultores da língua e estudiosos dos seus percursos semânticos, temos ainda o elemento de composição culta, sax, que exprime igualmente a ideia de pedra. Oriundo do latim, saxus, compõe as palavras sáxeo e saxoso, duas formas eruditas de dizer pétreo, pedroso ou pedregoso, e ainda saxátil, o que vive entre as pedras, e saxícola, que tanto é o indivíduo que habita as penedias como o idólatra que presta culto aos deuses de pedra. Passando ao uso popular, saxus deu seixo, pedra dura ou pedra bruta que, com o tempo e para as gentes do litoral sul, passou a referir, em geral, os calhaus rolados das praias ou dos rios. Diga-se que em alguns sítios do interior norte e serrano, o termo seixo é empregue para denominar os fragmentos angulosos de quartzo filoniano espalhados no terreno por desmantelamento e erosão dos respectivos filões, onde, em alguns casos, se explora este mineral.
Seixal, quer a cidade e o concelho a sul do estuário do Tejo, quer a povoação na costa norte da ilha da Madeira, devem o nome à abundância de calhaus rolados ou seixos ali concentrados pelo transporte fluvial do Tejo, no primeiro caso, e pela acção das vagas, no segundo, tornando seixosos os respectivos locais. Em alusão ao referido carácter anguloso, às vezes subentendido na palavra seixo, temos, por exemplo, as localidades Seixinho (Guarda), Seixal (Viseu) e Seixoso (Porto) marcadas pela abundância de fragmentos angulosos de quartzo dispersos no solo. A associação de seixo ao quartzo filoniano está ainda patente na expressão seixo-bravo usada, no norte do país, para referir os filões quartzosos estéreis, isto é, sem minério. Chama-se seixeira à escavação de onde se extraem seixos para diversos fins industriais, e seixebrega à planta usada em tisanas, como mezinha, para destruir ou dissolver as pedras do rim, ou cálculos, termo este que, como veremos, está também ligado ao mundo das pedras. Saxífrago é o que parte ou destrói a pedra, sendo curioso notar que, neste último  nome, também o elemento frago evoca o mesmo tipo de material. Com efeito, fragas são penhas, penhascos ou rochedos. Fragoso, saído do latim, fragosu, significa pedregoso, penhascoso. Fraguedos e fragarias são penedias, do mesmo modo que fragais ou fragaredos (como se diz em Trás-os-Montes) e fragueiros são os que vivem nas montanhas, entre fragas.Um outro nome, silício e os seus derivados sílica, silicatos, silicitos e silicon radicam no termo latino, silex, que tanto significa pederneira como, também, pedra e calhau. De facto, são de pedra os bem conhecidos artefactos de sílex, ou sílices, dos nossos remotos antepassados e, daí, a expressão Idade da Pedra com que designamos esses tempos pré-históricos.
Mas há ainda outros termos na nossa linguagem comum associados às rochas, tal a sua importância na vida da humanidade. E comecemos pela palavra cálculo, atrás referida como pedra na litíase biliar ou na renal. Com efeito, calculu, do latim, significa pedrinha, e com pedrinhas se contava e faziam contas na Antiguidade, operações a que hoje chamamos calcular e que fazemos por via electrónica nas modernas calculadoras. Do mesmo modo, cal, também do latim, calx, significa calhau e, portanto, pedra. Com pedras a servirem de lastro ou balastro se calam os barcos quando, sem carga, se fazem ao mar. Calçada é o revestimento com pedras (calces, em latim, no plural), calceteiro, o artista que celebrizou no mundo a calçada portuguesa, e calcedónia, a variedade de quartzo presente nas ágatas, no ónix e noutras rochas siliciosas. O mesmo étimo está na base de calcário, a rocha sedimentar com que se faz a cal, a pedra branca que, uma vez regada com água (derregada) dá a calda com que ainda se caia nas aldeias e montes do Alentejo, ou a argamassa que dantes se usava em vez do cimento. Cálcio, calcite, calçado, calcanhar e calcâneo são nomes que facilmente se relacionam com esta mesma etimologia. Calçar é também meter uma pedra por baixo daquilo que queremos que fique firme, calcar é dar a compactação da pedra e calcinar é queimar e reduzir a cinzas, isto é, ao resíduo mineral, não combustível. Calha ou caleira são sulcos ou regos inicialmente empedrados, tendo o nome sido generalizado, depois, ao mesmo tipo de aparato ainda que feito com outros materiais. Mas caleira ou caieira (termo usado no Alentejo) é também forno de cal e caleiro ou caieiro, o homem que a fabrica e/ou a vende, caiador aquele que se serve da cal para caiar e caios são as ilhas rasas, feitas de areia calcária, dos mares recifais das Caraíbas. Calle é a rua ou a calçada dos nossos vizinhos espanhóis, com correspondência para português em calhariz e na palavra calheta que, no mundo rural do continente se usa para referir um atalho por onde passam os rebanhos e que, nas ilhas, significa pequena enseada ou abrigo na costa rochosa.
E as referências às rochas, sempre ligadas ao nosso quotidiano desde os tempos mais recuados, não cessam de no-lo lembrar.
Lapa, vinda do pré-céltico, é uma grande pedra que forma um abrigo natural, e lapedo é sítio de muitas lapas. De origem incerta, talvez pré-romana, laje deu lajão, lajinha, lajear e lajedo.
De origem igualmente obscura temos ainda os termos rebo e gobo que significam calhau rolado, e os seus equivalentes minhotos, gode e godo, e o transmontano, gogo, o seixo liso ou rebolo, em que o sapateiro batia a sola.
De uso regional, restrito, chamamos conhos, do latim cuneus, tanto aos penedos arredondados e insulados a meio do rio, como aos calhaus quartzíticos rolados das aluviões fluviais. No Tejo e no Zêzere, entre outros rios do centro do País, são conhecidas as conheiras, ou seja, extensos amontoados de conhos, deixados pela prospecção e lavra do ouro, levadas a efeito em grande escala, ao tempo da ocupação romana do nosso território.
Rupi ou rupe são mais dois elementos de composição culta, de origem latina, que veiculam a ideia de rocha, sendo por isso que qualificamos de rupículas os animais que vivem entre rochas e adjectivamos de rupestres as gravuras e as pinturas deixadas nas paredes rochosas pelos nossos antepassados pré-históricos.
Para os romanos, gemma era o nome que se dava às pedras preciosas, algumas delas já então conhecidas e descritas por Plínio, o Velho. É por esta razão que designamos ao mineral halite damos o nome de sal-gema, para a distinguir do cloreto de sódio produzido nas marinhas.
Do outro lado do Atlântico, o étimo ita, do tupi, falado pelos índios do Brasil, quando os portugueses ali chegaram, traduz a ideia de pedra e figura na composição dos nomes de duas localidades brasileiras de Minas Gerais, Itabira e Itacolumi, e de duas rochas, muito especiais, oriundas dessas regiões — itabirito, um arenito flexível, e itacolumito, um importante minério de ferro. Divergente de ita, segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, o sufixo culto ite, do grego ités, é usado, entre franceses e ingleses, na formação de nomes quer de minerais quer de rochas. Entre nós, este sufixo é apenas usado nos nomes de minerais (pirite, calcite, dolomite, grafite, etc.) Para as rochas, os petrógrafos portugueses da segunda metade do século XX, adoptaram a versão ito (granito, quartzito, dolomito, antracito, kimberlito, etc.)
In: A. M. Galopim de Carvalho - “Introdução ao Estudo do Magmatismo e das Rochas Magmáticas”, Âncora Editora, Lisboa, 2002. 

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