"A palavra “biodiversidade”, hoje em dia tão na moda, foi “criada” em 1986, tendo sido considerada uma nova área de pesquisa em biologia aquando da realização da Convenção da Diversidade Biológica, em 1992. A biodiversidade deve ser considerada em três diferentes níveis: genes, espécies e ecossistemas, e decorre do actual senso comum que a conservação da biodiversidade é crucial para a manutenção da vida na Terra. Mas, para que a biodiversidade possa ser conservada, é necessário antes que seja conhecida e descrita. Por isso, atualmente existem diversos grupos de pesquisadores, ONG e órgãos governamentais promovendo programas de descrição local ou global da biodiversidade. Considerando-se que existem 1,9 milhões de espécies biológicas descritas, de um total de 11 milhões de espécies biológicas estimadas, este trabalho não deve ser concluído tão cedo. Assim, a necessidade de acelerar este trabalho levou ao desenvolvimento de técnicas taxonômicas de high-throughput (difícil de traduzir; rápidas e de alto desempenho), como as técnicas de taxonomia bioquímica que se fundamentam em análises genômicas.
No que se refere à biodiversidade marinha, esta parece ser bastante reduzida, muito, mas muito menor do que a biodiversidade terrestre. Recentemente um artigo na revista Science levantou esta questão. Estima-se um total de 167.817 espécies válidas, em um universo de 318.004 táxons, de espécies até filos (de acordo com o World Register of Marine Species). Atualmente existem 229.602 espécies marinhas descritas, mas estima-se um total de 10 milhões de espécies para o ambiente marinho.
Como a comunidade científica considera os oceanos um ambiente relativamente homogéneo, no qual o surgimento de novas espécies é extremamente raro, o ambiente marinho foi muito menos estudado ao longo dos anos. Todavia, existem muitas espécies marinhas crípticas (morfologicamente similares, mas geneticamente distintas), as quais são praticamente desconhecidas. Por isso, acredita-se que estudos aprofundados sobre a biodiversidade marinha podem mostrar que esta é tão diversa quanto a terrestre. Embora o número de espécies marinhas seja muito menor do que o das espécies terrestres, a diversidade de grupos taxonômicos é muito maior. Para se ter uma idéia: dos 35 filos de animais marinhos conhecidos, 34 são representados no ambiente marinho, e destes 14 são exclusivamente marinhos. De todas as espécies marinhas (animais, algas e protistas), 98% são bentônicas (vivem no substrato) e apenas 2% são pelágicas (vivem nadando).
A biodiversidade marinha está estreitamente relacionada à história da humanidade e à manutenção das atividades humanas. Fonte de alimento, recursos biotecnológicos e outros recursos (não vivos, como energia das marés, por exemplo), indicadores de “saúde ambiental” e do funcionamento de ecossistemas, os oceanos têm sido explorados de maneira irrestrita, levando ao surgimento de inúmeros problemas como a diminuição dos reservatórios naturais de peixes e de crustáceos, a degradação dos habitats, a poluição crescente, o aquecimento global, invasões biológicas, entre outros. Espera-se que os reservatórios naturais de peixes estejam irreversivelmente comprometidos em 50 anos, a continuar o processo intensivo de pesca em andamento.
Pelo facto de ter sido menos intensamente estudado do que o ambiente terrestre, a descrição da diversidade biológica marinha apresenta discrepâncias significativas entre os diversos levantamentos realizados. Por exemplo, o atual número de mamíferos marinhos conhecidos no Canadá é de 52, quando em 1995 era de apenas 10. Levando-se em conta quão conspícuos são os mamíferos marinhos, quando tal discrepâncias são projetadas para invertebrados, macroalgas e espécies plantônicas e microscópicas percebe-se o grau de desconhecimento científico sobre a biodiversidade marinha como um todo. Avalia-se que perto de um terço das espécies marinhas macroscópicas tenha sido descrita até hoje. E a descrição destas espécies foi feita, quase que de maneira exclusiva, utilizando-se caracteres morfológicos.
O problema de se utilizar tais caracteres é que estes são difíceis de discernir nos diferentes estágios do ciclo de vida de organismos mais primitivos. Assim, o uso de técnicas bioquímicas para o auxílio na descrição das espécies marinhas foi inicialmente realizado com allo-enzimas e, com o advento das técnicas de biologia molecular, em particular da técnica de PCR (polymerase chain reaction, reação de polimerização em cadeia), a taxonomia molecular realizou grandes avanços na descrição de espécies de organismos marinhos. Mais recentemente, a utilização da técnica de código de barras de DNA (DNA barcoding) começou a revolucionar a descrição das espécies biológicas como um todo, e das espécies marinhas em particular.
Na técnica de DNA barcoding, analisa-se o DNA de mitocôndrias (organelas celulares responsáveis pela respiração das células) pelo fato destas apresentarem maior taxa evolucionária, poucos introns, um grande número de cópias em uma única célula e uma baixa porcentagem de recombinação. De acordo com esta metodologia, espécies podem ser identificadas observando-se diferenças no código de barras de 2 a 3%, ou de 20% a 30% para delimitação de espécies. Tal técnica mostrou ser extremamente válida para a classificação de plantas terrestres, algas e fungos. As vantagens em se utilizar DNA barcoding é a padronização das análises, que permite a comparação direta, via rede, de vários estudos sendo realizados simultaneamente no mundo todo, que podem revelar casos de sinonímia taxonômica, espécies potencialmente crípticas e populações geneticamente distintas. O DNA das espécies analisadas pode ser armazenado de maneira confiável, sem grandes custos, associados a vouchers (espécies macroscópicas preservadas em museus). Vários sistemas internacionais de DNA barcoding já foram criados, sendo de referência o DNA Barcode of Life Data Systems (BOLD), que indica um protocolo padrão para a aquisição, armazenamento e análise de dados. Os dados armazenados no BOLD inclui dados de amostragem (coordenadas de GPS), imagens, informações taxonômicas, o código de barras de cada espécie, as seqüências de primers do material genético analisado, e até mesmo as operações de laboratório utilizadas em tais análises. Estes dados se referem às espécies processadas no Biodiversity Institute of Ontario (Canadá). Os dados são de livre acesso. Mas evidentemente que podem ocorrer erros durante a realização de tais análises.
A utilização do DNA barcoding foi inicialmente muito criticada por taxonomistas tradicionais, que manifestaram sua preocupação de que um trabalho cuidadoso de descrição pudesse se tornar automatizado, levando ao total desaparecimento da especialidade, o taxonomista. Porém, tal premissa mostrou ser totalmente inválida. Os próprios pesquisadores que utilizam da técnica de DNA barcoding argumentam que esta técnica apresenta várias limitações, como baixa resolução (capacidade de distinção entre espécies muito próximas), a análise de pseudogenes e a presença de contaminantes amplificados quando da utilização de “primers universais”. A grande vantagem em se utilizar as técnicas de DNA barcoding é que estas estão sendo continuamente aprimoradas, e estão revalorizando o trabalho dos taxonomistas. Em conjunto, o trabalho de pesquisadores que utilizam DNA barcoding e taxonomistas tradicionais deverão conduzir a uma ampliação significativa da descrição da biodiversidade da Terra, permitindo a identificação de espécies em todas as etapas de seus ciclos de vida, utilizando-se tanto material fresco como preservado, e identificando casos de dimorfismo sexual e espécies potencialmente crípticas.
Já existe um consórcio internacional do Código de Barras da Vida, que objetiva estabelecer os protocolos de DNA barcoding para a identificação de espécies biológicas. O maior projeto que será desenvolvido neste sentido é o International Barcode of Life Project, a ser iniciado em outubro deste ano com o objetivo de catalogar 500.000 espécies biológicas até 2015.
No que se refere ao ambiente marinho, a utilização das técnicas de DNA barcoding irão facilitar enormemente o gerenciamento e a utilização racional dos recursos naturais, tão importantes na alimentação, saúde e ciências do ambiente. Como muitas espécies marinhas apresentam ciclos de vida complexos, com estágios larvais de difícil identificação, o uso de DNA barcoding será uma ferramenta de grande valor para complementar informações para a identificação das espécies marinhas. Além disso, poderá ser utilizada para o monitoramento de espécies invasoras.
Vários grupos de organismos marinhos já começaram a ser analisados utilizando-se técnicas de DNA barcoding: algas, diatomáceas, cnidários, moluscos, crustáceos, equinodermas, aranhas do mar (Pycnogonida), quetognatos, nemátodes, peixes e mamíferos. Os esforços em se catalogar as espécies marinhas utilizando-se DNA barcoding são realizados por projetos como o Marine Barcode of Life Project, que resulta de um esforço conjunto entre o Consortium for the Barcode of Life (CBOL) e o Census of Marine Life (CoML), que espera prover 50.000 códigos de barras a espécies marinhas até meados de 2010. Até o momento, foram catalogadas 37.000 espécies. Assim, a expectativa é que se consiga eliminar as lacunas de conhecimento da biodiversidade marinha, mesmo de espécies coletadas no passado, estimada na descrição de somente 48% das já coletadas.
O mais incrível é que existe a perspectiva de se coletar DNA da água do mar. Para estas análises, primers especiais de análise de DNA estão sendo desenvolvidos. Muitas espécies já descritas, porém preservadas em formol, terão que ser re-coletadas para análise, pois o formol não permite a amplificação do DNA. As novas coletas deverão ser feitas utilizando-se etanol, que não compromete a amplificação do DNA para análise. Este trabalho monumental deverá ser realizado por especialistas em taxonomia clássica e em DNA barcoding. E este pode ser um fator considerável de atraso, simplesmente porque a ciência da taxonomia foi sendo desprezada ao longo das últimas décadas, por ter sido considerada uma ciência meramente descritiva. Consequentemente, o número de taxonomistas de praticamente todos os grupos biológicos diminuiu drasticamente nos últimos anos. A falta de taxonomistas poderá atrasar significativamente a realização do levantamento de espécies marinhas do mundo todo. A título de exemplo, o Brasil possui o maior grupo de taxonomistas de esponjas marinhas do mundo, e dois dos menos de 10 taxonomistas de Ascidiacea de todo o planeta.
Mesmo assim, um projeto desta natureza não pode ser deixado em segundo plano. Novas técnicas de amostragem em águas profundas estão revelando que a biodiversidade marinha é bem maior do que se esperava. Uma vez que um levantamento global será feito, poderão ser realizados estudos extremamente amplos de cadeias alimentares e de ecossistemas globais, bem como estudos de relações entre táxons em níveis superiores.
A técnica de DNA barcoding e de taxonomia clássicas são perfeitamente complementares, e a utilização do DNA barcoding trouxe, na verdade, um renascimento no interesse na taxonomia tradicional. Com a catalogação por DNA barcoding de milhões de espécies, os taxonomistas terão um trabalho extremamente árduo e volumoso de descrição destas espécies. O trabalho destes especialistas permitirá um conhecimento muito mais amplo e profundo sobre a biodiversidade marinha e suas implicações para a manutenção da vida no planeta Terra.
Entre 3 e 4 de dezembro de 2009, a FAPESP promoveu o Biota-FAPESP International Symposium on DNA Barcoding, um evento especificamente direcionado para divulgar e promover a adoção do DNA barcoding na descrição e catalogação da biodiversidade do estado de São Paulo. Foi o primeiro evento científico neste tema específico realizado no Brasil.
Radulovici, A., Archambault, P., & Dufresne, F. (2010). DNA Barcodes for Marine Biodiversity: Moving Fast Forward? Diversity, 2 (4), 450-472 DOI: 10.3390/d2040450"
Fonte: Blogue Química de Produtos Naturais - 27 de Março de 2010